Sunday, 10 October 2010

Começar por dizer que nada acontece por acaso... parece-me mal, porque depois de tantos acontecimentos já todos temos a certeza disso e sabemos quão escusado é dizê-lo.

Começo portanto pelo sítio certo: o início.
A certa altura da minha vida tive que tomar uma decisão (será que posso chamar-lhe isso? No fundo foi algo inevitável) sobre ir viver para o Porto.
Ninguém falava muito sobre o assunto lá por casa porque todos sabíamos o porquê de estarmos sequer a ponderar esta opção. Só isso fazia-me sorrir, ainda que em segredo ou muito ao de leve, porque sabia que me estavam a proteger.
Lembro-me que não reagia. Embalada num estado de sonolência sem fim.
O pouco que me recordo dessa altura é de ver as coisas acontecerem e passarem... como quando vamos no carro com a cara encostada ao vidro na auto-estrada...

Alguém decidiu que já bastava disso, e sim, eu ia para o Porto, e ia para casa da Tia Lena.
A Tia Lena para mim era uma daquelas tias que iam lá a casa nos feriados religiosos e que tirando isso nem se sabia se tinha uma vida ou onde a fazia, para além de que era bem longe de onde vivíamos... (Sem ofensa tiazinha :) )

"Vamos só ver a casa e onde é... se fica longe do metro, da escola..."
Pois... chego lá, dão-me uma chave para a mão, apresentam-me uma vizinha que devo chamar em caso de emergência, quando demorou 10 minutos a atender a porta e eu nem sequer estava a gritar socorro do apartamento de baixo.
"Agora nós vamos de férias e ficas aqui!!"
Sim, e estava lá um senhor que eu não me recordava de ter visto na vida, que aparentemente era o marido da minha tia...
Medo?! Onde... nenhum! Receios?! Zero!!
Vamos a isto...

O meu quarto tinha quê?! 4 metros quadrados?
Dormia num sofá cama... com um colchão de esponja mais fino que o meu livro de geometria!
uma janela por trás da cama, e espaço para pôr as coisas não havia porque tudo estava coberto de livros...

Tio, já começou a entrar em pânico? :)

No primeiro dia fui recebida por um casal sorridente, que me fez sentir em casa dando-me as chaves no primeiro minuto.
À entrada tinham uma Bíblia GIGANTE, a maior que já tinha visto, que me fez perceber que era uma casa abençoada.
E deixaram-me ali... Sozinha (aparentemente). Quem é que deixa alguém que se acabou de conhecer (sim, porque quando temos 5, 7 ou 10 anos e conhecemos alguém... Temos de REconhecer... porque nessa altura não somos gente :) ) em sua casa, sozinho durante 2 semanas? Querem maior prova de confiança?

E quem é que tira as suas coisas, para nos dar abrigo e guarida, quando podiam simplesmente ter dito que não havia espaço?
No quarto mais pequenino e acolhedor do mundo.
Alguns podem dizer que era atafulhado de livros... Sem espaço sequer para respirar.
Pois os livros fizeram-me companhia. E ao longo de 1 ano e meio, sempre que me punha em pé no colchão de esponja, descobria um título novo... era lindo imaginar a quantidade de conhecimento que aquele quarto continha :)
E foi assim também que comecei a conhecer O Tio ... pela sua biblioteca.

Na minha terceira semana no quartinho com uma vista LINDA sobre o Parque Real tive uma gastroentrite.
Não é bonito. Eu sei...
E também sei que não contei a ninguém e fui para o hospital sozinha.
Quando estava a apanhar soro por desidratação liguei à mami e disse pra ela ligar aos tios e dizer que eu ia chegar tarde pra jantar, mas não dizer porquê.
Pois... Tá 'queta!
Passados 10 minutos tinha O Tio ao meu lado, a relatar o historial todo, depois de já ter falado com o médico e confirmado que estava tudo bem comigo.
A fazer-me rir do facto de ter ido "ao hospital beber um copo e não convidar os amigos!"
E ainda ter pago a conta do bar :)
(Tio, ainda tenho o bilhete que me escreveu quando tentei pagar a dívida.)

Tenho tantas histórias maravilhosas para contar...
Sobre como eu amava aquelas noites na sala, os três calados, cada um a fazer o que tinha a fazer, mas no fundo a desfrutar da energia uns dos outros.
Ou as minhas torradas... Que todos os dias O Tio ou A Tia faziam com tanto amor.
O FACTO DE EU COMER SOPA TODOS OS DIAS E EU NEM SEQUER GOSTAR DE SOPA.
Mas aquela era especial :)

E TAIZÉ!!
A Tia sempre quis ir a Taizé quando tinha a minha idade, mas nunca teve possibilidades para tal...
Como raio é que lhe foi parar "às mãos" uma sobrinha que, passados uns meses lhe apresentou uma "nova família"?
E acho que nenhum de nós vai algum dia esquecer o fantástico almoço onde recebemos comida e bebida eternas... daquelas coisas que podemos sempre tirar do bolso (ou do coração), petiscar, e ficar satisfeitos.
Palavras.
Amor.

Tio, não sei se algum dia me apanhou a olhar estarrecida para si...
É só que gosto de ver cada ruga da sua cara... Enquanto me conta histórias sobre como pôs as mãos no fogo por uma mulher :) ou como quando dá um miminho à tia. Quando a ajuda a lavar a loiça... ou a cobre com uma manta depois de ela adormecer no sofá a ver as novelas...
E gosto de olhar para os seus olhos MUITO azuis...

Pouco tempo depois de eu lá viver, a filha do tio faleceu.
Não a conhecia... Mas chorei muito, imaginando o sofrimento daqueles que a conheciam.
E cada vez que alguém fala dela, a sua cara ainda se ilumina. E toda a gente percebe a pessoa fantástica que ela foi.
Os olhos do Tio nunca mais foram os mesmos depois de esse dia.
Estão mais baços agora...
De certo conhecerão muita gente que também tem os olhos baços. Olhos cheios de tristeza, dor, angústia ou arrependimento.
Pois os do Tio são diferentes...
Não digo que não tenham tristeza. MAS... a alegria sobrepõe-se.
E a sabedoria também.
Não sei explicar...
O Tio sabe que quem teve, será sempre seu e estará sempre consigo.
Sabe...
Tio... o tio sabe.
E quando se olha para ele... Também o sabemos.

Os Tios um dia disseram-me que tiveram a felicidade de me conhecer...
Como é que eu ei de dizer que... Não podia ser de outra maneira?
A felicidade foi minha. É minha.
É muito raro termos um lar longe de casa... Um sítio que é praticamente casa, apesar de não ser A casa...
E eu tenho um.
Vão me dizer que foi tudo uma coincidência?
Que os nossos caminhos se cruzaram PORQUE SIM?
Pois pois...

"Tens o dom de encontrar pessoas bonitas pelo caminho"
:)
Pelos vistos... sim.

Tanto amor naquela casa...
Tantos cantinhos bonitos.
O meu preferido é sem dúvida a mesinha à saída do meu quarto: tem uma foto da sua filha, uma jarra sempre com flores fresquinhas, uma de papel feita por mim e uma vela com a cruz de Taizé.

Gosto da reciclagem e do facto de A Tia já ter calculado a sua pegada ambiental :)
Gosto dos cavalinhos para as facas de manteiga.
Gosto do Ferrari e de quando vamos dar uma volta :) (Private joke)
Gosto dos jantares de quinta, e da casa cheia.
Gosto do facto de a tia ter comprado todos os tipos de comida vegetariana disponíveis.
De saber que ambas somos alérgicas ao calor, adoramos batatas com azeite, e gostamos de falar com pessoas bonitas e especiais :)
Gosto do facto de terem "adoptado" a Maria João, a Rita, o Moço e o Tommy e assim também eles me dizem mil vezes quão especiais vocês são.
Gosto de quando o Krszystof me manda mails a mandar mil beijos para os Tios porque tem saudades deles e de passear com o Tio...
Gosto de quando o João me diz "MANDA BEIJINHOS AOS TIOS QUE EU NÃO CONHEÇO MAS QUE ADORO" :)

(Já está na altura de parar?)
Pois, ó Tio, está numa festa, e tem de se ir divertir... :)
Eu paro por aqui, certa de que por esta hora AMBOS já perceberam o quanto sinto que lhes devo e quanta da minha alegria é resultado de vos ter conhecido.

Feliz Aniversário Tiozinho.
Quantos são? 23? :)
Parabéns... Por uma vida linda e cheia.
Gostava de estar aí para partilhar o dia e a felicidade.

Gosto muito de si.
Da Lena.
Gosto de gostar de vocês.

E queria fazer uma conclusão.
Mas não consigo...
Porque não há.

"Porque é que já não vais para casa da Lena e do Xandre?" (pergunta que o Manu ainda hoje faz... MIL!)
Porque agora tenho que ir para longe Manu... porque já acabou...

"Agora vives na tua 3ª casa!" (Merches, à umas duas semanas)
Porque toda a gente sabe onde é a 2ª :)


um xi, com todo o meu amor...
(e mais algum que ande por aí)
Sarinha, um pouco vossa... e um pouco de quem a quiser.

6 comments:

Mariana said...

ooohh... fico "envolvida" nas tuas histórias e no teu amor e felicidade e alegria... "levas-me" contigo nas tuas historias!
e gostei de te conhecer um pouco melhor depois de ler esta história e espero que aí venham mais porque nao me canso nem um pouco de ler o que escreves!

bjinhooo enorme e xi-coraçao apertadinho da mary embevecida pelas tuas historias... =D

José maria said...

Eu sou filho do Tio Alexandre,chamo-me José Maria e fiquei comovido com a sua carta ,pois eu senti isso com os meus avòs em casa deles,da avó Isménia eavô josé Maria a senti exactamente a mesma sensação que relatou.É verdade o meu Pai é um homem sábio, cheio de espaços para dar a todos.Um abraço forte e muito obrigado por ter-me feito sentir vivo,,,,

Portugal Invicta said...

Olá Sara, sou a Leonor (mulher do Zé Maria) e nora do Tio Alexandre.
Gostei muito do que escreveste e também eu posso dizer, que tenho muito orgulho do sogro que tenho.
Muitas vezes penso para mim: perdi o meu pai em 1991 e agora ganhei outro. É uma pessoa fantástica e muito boa. Dá sempre concelhos muito sábios e é de uma grande ternura.
Também sinto muito carinho por ele!
O Tio Alexandre, mesmo com todo este sofrimento, é um "porto seguro", sinto-o como uma pessoa que está sempre ali, quando precisamos de ajuda. Primeiro estão os outros e depois ele. Se alguém estiver doente ou precisar da sua ajuda, deixa logo tudo o que estiver a fazer e vai logo acudir.
É uma pessoa nobre de alma!
A Lena, vê-se nos seus olhos, que é uma mulher cheia de admiração, pelo marido que tem e com razão!
Cozinha lindamente e dá sempre uns miminhos. Tenho saudades dos "tomates do Sr Joaquim" :p de Abragão, em que a Lena fazia uma simples salada de tomate e cebola e temperava com sal grosso. Comia pratadas de salada e só gosto das saladas feitas e temperadas por ela, ficam no ponto!
Um beijinho e Bem haja,

Leonor.

lucinda said...

Sara...
Impressionante como consegues ser espectacular nos momentos mais inesperados, apareces e puft... mandas uma "lufada" de amor seja com pequenos gestos, seja com palavras como estas escritas para os teus tios (os quais tive o prazer de conhecer, graças a ti... claro!!!) adoro-te miuda ...♥♥♥

Unknown said...

Confesso que estava a tentar castigar-te e não escrever nada aqui mas não aguentei. FABULOSO. ;)

Anonymous said...

O meu nome é Mariana e sou a "neta" mais velha do Avô Xando...é um vicio dificil de perder o amor que se tem sempre por este senhor.

Ter amigos assim é uma grande benção e a Lena é de um carinho imenso com todos nós e não somos poucos, sempre a perturbar a paz do casal.

Também sinto que tenho uma divida de gratidão para com o este meu avô, que rápido se tornou num exemplo a seguir e num porto de abrigo... a serenidade que falas vem da bondade e da humanidade que ele transborda e do sentido de humor, mesmo depois de uma vida cheia e com algumas amarguras e más surpresas, continua a acreditar e a levar a vida com a mesma bondade.

Tento aprender com o avô Xando esta capacidade de aceitar o Mundo como ele é, e saber agir no momento certo para o tornar um lugar melhor.

Este Verão voltei à Botica e lá passei uma semana, como quando era bem mais menina, vim cheia de amor, energia e força de enfrentar o mundo. É assim, quando se volta a casa e se tem os mimos da família e a comida da Lena:)
Boa sorte e bom caminho para ti!

Mariana